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quinta-feira, dezembro 18, 2003

Zatoichi 

de Takeshi Kitano

Site Oficial: "Zatoichi" (japonês) (*)
Site Oficial em francês: "Zatoichi"

Cast:
Takeshi Kitano Zatoichi (como Beat Takeshi)
Tadanobu Asano Gennosuke Hattori
Yui Natsukawa O-Shino, esposa de Gennosuke Hattori
Michiyo Ookusu O-Ume
Takahito Iguchi Shinkichi (como Gadarukanaru Taka)
Yûko Daike O-Kinu
Daigorô Tachibana O-Sei/Seitarou
Ittoku Kishibe Ginzou
Saburo Ishikura Oogiya
Akira Emoto Nomiya no Oyaji

!Aviso da praxe!
Se ainda não viu este filme, vá embora e volte depois de o ver.
Não diga que não foi alertado antes de ler esta entrada.


Bom...
Para já, se ainda não tinham reparado, sou fanático por cinema japonês. De facto, sou amante da cultura nipónica e, em especial, de tudo o que diga respeito ao Japão dos séculos XV ao XVIII, para além de "mangafan" e "animefan". Desde Akira a Ghost in the Shell, passando por Perfect Blue, até às películas que o Mário e a Beatriz vão escolhendo a cada ano para o Fantasporto (onde vi os fabulosos Audition, The Isle ou o fantástico A Snake of June - o melhor do Fantas 2003, para mim - e o incrível Ichi, the Killer!), nunca esquecendo o glorioso mestre: Akira Kurosawa.
E Takeshi Kitano... Claro.

Kidzu ritan... Kikujiro... Hana-bi... Brother... Dolls (que falhei...). You name it.
E agora, Zatoichi.

Zatoichi encheu-me as medidas; pelo tema, o samurai cego, massagista e viciado no jogo, que percorre o Japão dos Tokugawa (o período Edo de Lone Wolf and Cub, aliás uma referência paralela em tudo o que diga respeito a Zatoichi, e cujo conhecimento prévio me fez apreciar ainda mais este filme); pela estética que mistura elementos clássicos com referências culturais do Japão moderno; pelo rigor histórico do grande filme de época, a roçar Kurosawa, mas Kitano Style.

O primeiro filme sobre Zatoichi tem mais um ano do que eu; foi realizado em 1962 (!), tendo sido feitos pelo menos 27 filmes desde então, incluindo este, de Kitano, treze dos quais disponíveis em DVD (quase todos em VHS). A esta lista, juntem-se mais de 100 episódios de uma série televisiva (!!). Não, Kitano não inventou Zatoichi, mas a sua abordagem é fenomenal.

Não sendo Zatoichi uma novidade para os conhecedores e, principalmente, para a maioria do público japonês (para o qual este filme foi feito expressamente), ele foi uma surpresa para o vulgar espectador "ocidental", sobretudo em termos de forma - o que explicará a reacção da crítica ao filme, que variou da relativa indiferença à total rejeição, conforme os conhecimentos e a capacidade de digestão de cada "crítico", essa espécie infame.

Neste filme, tudo é impecável, desde a fabulosa interpretação do próprio Takeshi Kitano (creditado como "Beat" Takeshi) à distribuição dos papéis, do rigor histórico ao uso de concisos flashbacks e twists. Pecando por não conhecer os restantes filmes de Zatoichi, arriscaria dizer, ainda assim, que este será o melhor.

Agora a parte que "não se entende" - do meu ponto de vista.
Os japoneses vivem obcecados com o seu passado glorioso, personificado no glorioso Samurai, tanto como pela moderna cultura "ocidental", representada sobretudo pela vertente norte-americana, que invadiu o Japão do pós-guerra como nunca antes outra o fizera desde que o império se isolou do exterior. Em particular, é a música norte-americana que fascina os japoneses. O fenómeno Karaoke chega a atingir proporções doentias, mas não só. Também o glamour do Music-Hall, o tap dancing, Fred and Ginger... Desde a primeira cena em que surgem ritmos contemporâneos (quando Zatoichi passa perto de um campo onde camponeses escavam a terra ao ritmo das batidas da música) que vi onde íamos parar.
Mas o clímax desta lógica não foi o apoteótico final de Music-Hall, antes sendo o aparecimento do tresloucado "filho da vizinha", meio ashigaru (1), meio samurai, de yari (2) em punho, aos gritos, qual D. Quixote japonês em busca dos seus gigantes. A resposta a Zatoichi, quando este indaga quem é o "cromo", simboliza muito do japonês moderno: "É o maluco do filho da vizinha; tem a mania que é samurai..." diz-lhe O-Ume.
Nem de propósito, a National Geographic deste mês tem uma reportagem sobre Samurai e como os japoneses encaram este período da sua história. Numa fotografia, vemos um pacato pai de família vestido a rigor, cruzando lâminas com um qualquer agente turístico, também fantasiado de samurai; noutra, um homem em traje quase completo de samurai, alugado, fazendo compras num supermercado... O ridículo das imagens não tem descrição possível em palavras. O que mais existe no Japão de hoje são "malucos que têm a mania que são samurai"...
E escolas de sapateado.
À primeira vista, dir-se-ia que os figurantes bailarinos que fazem as coreografias de dança no filme são uma sucursal nipónica dos Stomp. Nada disso. Trata-se do grupo de sapateado The Stripes, muito popular no Japão.

Existem duas leituras possíveis para o filme de Kitano - do meu ponto de vista, naturalmente. Uma é o diminuir do peso da tradição no Japão de hoje, quase a ridicularizando, misturando o Bushido com o sapateado e mostrando a miséria em que os mais nobres samurai viviam, de facto, no ocaso da sua existência. Outra é o ridicularizar dos valores actuais da sociedade japonesa, mostrando como adulteram os do passado, com os quais resulta ridícula qualquer justaposição.
A cena final, em que personagens de época dançam fazendo uma coreografia tipicamente norte-americana - a do sapateado em grupo, característica das Folies de Ziegfeld e do musical Hollywoodesco dos anos 50, é o paradigma desta leitura. Veja-se a expressão de O-Kinu, a geisha, enquanto dança, comparada com a do seu irmão travesti, O-Sei.

Na realidade, é para o japonês moderno, preso a estas duas correntes, que Kitano fala pelos lábios de Zatoichi, ao sentenciar, no final: "Mesmo de olhos abertos, nada consigo ver..."

A não perder em absoluto.
Um dos grandes momentos cinematográficos de 2003, embora quase um exclusivo para os amantes da cultura do país do sol nascente.

***** em *****!!

incremento:
Curiosamente, vimos o filme com uma amiga japonesa, a Fumiko, que se encontra a fazer um workshop de cerâmica na ARCO, em Lisboa, e que estava no Porto para uma visita à Sofia Beça, ceramista e esposa do arquitecto Manuel da Cerveira Pinto (sim, o MCP, um dos nossos bloggers-fantasma n'A Sombra!).
Como esperava, ela adorou o filme. No fim, perguntei-lhe se conhecia Lone Wolf and Cub. Ela fala muito pouco português e um inglês fraquinho, mas quando mencionei os nomes Ogami Itto e Daigoro ela sorriu e exclamou: "Kozure Okami! Yes, yes! Very good!" Kozure Okami é o título japonês de Lone Wolf and Cub.

incremento2:
A banda sonora de Zatoichi é de Keiichi Suzuki e é muito difícil de arranjar, mesmo através da internet. O único site que não é japonês onde a encontrei foi este.
Está ainda disponível para encomenda na FNAC, através do circuito de importação, e custa cerca de 40,00 euros; o mesmo que através da internet. Só para "maluquinhos", portanto. :)

incremento3:
Já há quem queira comparar o incomparável e se pergunte qual dos filmes é o melhor: se Zatoichi ou Kill Bill - vol. 1... Tenham juízo.


Medeia/Cidade do Porto - 13Dez2003 21:30 (sala 3) 4,50 €
(me, Lina, Sofia, Rute e Fumiko)

(*) O site japonês vale pelo visual e pelo som! A ver.

(1) ashigaru - soldados camponeses
(2) yari - lança japonesa, arma usual dos ashigaru, também usada pelos samurai (com eficácia muito superior, naturalmente)

Comments:
Bom, não cheguei a ver como ridicularização. Kitano é antes de tudo um ótimo humorista, e humoristas também podem optar em falar de aspectos curiosos sobre sua cultura com uma visão crítica sem deixar q isso vire um dramalhão (crítica aqui não significa necessariamente "agulhada", pode ser informação/esclarecimento) ...até pq Arte Social ou qq coisa do tipo é pensamento utópico demais, essa geração que todo dia eh bombardeada/ sobrecarregada pelos modismos americanos ja mostrou que não pode ser mais dirigida.
Por outro lado, a cultura japonesa tem tudo pra sobreviver, nesse ponto sou bem otimista, nem que seja pelas mãos de estrangeiros e nisso incluo os descendentes aqui do Brasil. Um fato curioso, por exemplo, é observar okinawanos virem ao Brasil para aprender a língua de seus antepassados, quase esquecida na atual Ilha de Okinawa, o uchinanguchi, dialeto melhor preservado pelos 1os. imigrantes daqui, de certa forma "congelados no tempo" um fenomeno interessante de se estudar: transmissão e apreensão de conhecimento da época. Fora os inumeros kenjinkais com professores bem renomados etc.

Talvez Dolls tenha mais a conotação de drama, mas esse longa propõe tal abordagem, e Hana-bi vai mais além...então eh outra história.
Zatoichi conta com personagens que deixam o enredo muito mais leve, incluso o protagonista).

Vale lembrar um outro dado relevante: essas fusões de cultura não são privilégios da ilha. No Japão e na China isso se torna mais perceptível porque o Oriente criou signos mto próprios, e as fusões ocidente/oriente são mtas vzs vistas com maus olhos pelos puristas. Eu acredito que sem a perspectiva pífia do "arroz de festa" é possivel fazer muita coisa interessante pesquisando fusões (por exemplo: dança flamenca e baião - estudando os ritmos, coreógrafos me surpreenderam).

Se isso agrada ou não (simplesmente pelo gostei/não gostei), acho válido pelo estranhamento que causa a primeira vista, normal... ninguém é obrigado a gostar de tudo, mas não deixa de ser válido pesquisar depois, se a curiosidade bater, sobre as manifestações culturais envolvidas. ;)

Gostei de saber aqui na matéria o nome do grupo que coreografou a cena final, The Stripes.
Vale tb ouvir as trilhas q Joe Hisaishi compôs pros filmes do Kitano (entre outros)...o tema de Kikujiro eh mto bonito :)

Grande abraço!
Mari
 
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